A Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) aprovou no último dia 8, por aclamação, a Resolução A/77/L.37[1], sobre comunicação simples para a acessibilidade de pessoas com dificuldade de leitura.
A proposta de resolução foi apresentada pelo Brasil, a partir da solicitação da Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Rede-In)[2], e contou com o apoio da Argentina, Egito, El Salvador, Grécia, Guatemala, Filipinas e Portugal, entre outros países, e também com o apoio da Aliança Internacional sobre Deficiência (IDA, em inglês).
A linguagem simples é um recurso de acessibilidade comunicacional que tem como objetivo principal fazer com que o leitor ou espectador entenda o que está escrito ou é dito. Significa expressar-se de um modo claro e inteligível, especialmente quando algum dos destinatários da informação for pessoa que, por qualquer razão, tem dificuldade de compreensão, como, por exemplo, pessoa com deficiência intelectual, dislexia ou pouca escolaridade. Para tanto, faz-se necessário observar diretrizes em relação às palavras a serem usadas, à estrutura dos períodos e das frases, à configuração visual e à validação do texto – sempre por um público beneficiário direto do recurso.
Ao ampliar a compreensão do que está sendo escrito ou falado, a medida de acessibilidade também abre oportunidades para a participação social, de forma plena e autônoma, dos grupos beneficiados por ela.
Ao contrário de outros tipos de acessibilidade, que fazem parte do discurso de pessoas com deficiência visual, auditiva e física e já constam, justamente por essa razão, de várias normas a seu respeito, a linguagem simples apenas muito recentemente começou a ser objeto de reflexões e de ações voltadas ao seu reconhecimento jurídico e subsequente efetivação.
A recente Resolução da AGNU a esse respeito, intitulada “Promover e integrar la comunicación fácil de entender a fin de que sea accesible para las personas con discapacidad”, ratifica normas da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD)[3] relacionadas ao dever, por parte do Estado, de garantia às pessoas com deficiência de acesso à informação e à comunicação (Artigos 2, 4, 9 e 21) e reitera previsões legais sobre o tema.
Embora o caráter das resoluções da Assembleia Geral da ONU seja considerado mais comumente como não vinculante[4], é importante que a Resolução A/77/L.37 seja compreendida como de observância obrigatória pelos Estados membros da Organização das Nações Unidas que fazem parte da CDPD. Isso porque aquele documento reafirma a Convenção – a qual o Brasil se obrigou a cumprir –, atribuindo-lhe inclusive valor de norma constitucional, e exorta os Estados-Membros a “redobrar os esforços para enfrentar os obstáculos e barreiras à acessibilidade em informações, comunicações e outros serviços”, especialmente em relação às pessoas com deficiência intelectual.
Vale lembrar que a acessibilidade, em todos os seus vieses, é um direito e um princípio que deve orientar a interpretação de toda a Convenção e as práticas sociais e governamentais. Então, a referida Resolução, ao reafirmar a CDPD – e o seu propósito de garantir o gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais pelas pessoas com deficiência, em igualdade de condições com as demais pessoas –, potencializa o direito à linguagem simples, constituindo mais um importante instrumento a ser usado na luta pela implementação dessa medida de acessibilidade comunicacional no país.
A linguagem simples é assegurada no artigo 3º da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência[5] e no artigo 2º da Lei 10.098/2000, tendo sido inscrita também no artigo 3º da Lei 14.129/2021[6], como uma das diretrizes do Governo Digital e da eficiência pública, qual seja, “o uso de linguagem clara e compreensível a qualquer cidadão”. Essa última Lei aplica-se a órgãos da administração pública direta federal, entidades da administração pública indireta federal e outras, nos casos que prescreve.
Visando ampliar o uso da linguagem simples na administração pública, foi apresentado pelos deputados Erika Kokay e Pedro Augusto Bezerra o PL 6256/2019, que institui a Política Nacional de Linguagem Simples nos órgãos e entidades da administração pública direta e indireta.
Quero crer que a aprovação da Resolução A/77/L.37 irá impulsionar a tramitação desse PL e conferir ao tema a relevância que merece. O raro interesse em relação à linguagem simples, a propósito, é o eco do descaso imposto às pessoas com deficiência, principalmente intelectual. Essas pessoas, e também outras que têm dificuldade de acesso à informação e à comunicação, experimentam cotidianamente negações dos seus direitos, justamente em razão do mencionado descaso e falta de acessibilidade. A ausência de acessibilidade, importa enfatizar, além de inviabilizar o gozo de direitos por parte dessas pessoas, inviabiliza o protagonismo das suas lutas e consequentemente a expressão, por si mesmas, das demandas que as afligem, perpetuando a exclusão social dessa parcela da população.
Se o Estado e nós, como sociedade, não escolhermos assegurar acessibilidade comunicacional a esse e a todos os públicos que necessitam dela, por meio do formato que melhor atende cada pessoa, continuaremos a desconsiderar a existência de milhões de seres humanos, sujeitos de direitos, mantendo-os silenciados em tudo que lhes é essencial.
[1] https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/LTD/N22/733/01/PDF/N2273301.pdf?OpenElement
[2] https://ampid.org.br/site2020/
[3] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm
[4] https://brasil.un.org/pt-br/177026-o-que-onu-pode-fazer-5-respostas-para-suas-perguntas
[5] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm
[6] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.129-de-29-de-marco-de-2021-311282132