Tutela da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA)

Como bem pontua Thomas L. Whitman, o autismo é um tema que tanto fascina quanto frustra a comunidade científica e clínica[1]. Seja pelo estado incompleto do conhecimento acerca de sua natureza e etiologia, seja pelas controvérsias envolvendo as formas de intervenções biomédicas e as melhores práticas para tratamento, o autismo oferece um constante desafio aos profissionais e serviços destinados a atender essa parcela da população.

Em função de suas amplas especificidades, importante precisar o conceito do transtorno do espectro autista. Segundo José Salomão Schwartzman, o autismo pode ser considerado um transtorno do desenvolvimento associado a causas neurobiológicas, que acarreta prejuízos com níveis variados de severidade, afetando as áreas de interação social, da comunicação e do comportamento[2].

O termo espectro aqui é empregado no sentido de uma linha que une dois extremos, onde há uma variedade de possibilidades entre eles, não havendo como diferenciar exatamente onde começa um aspecto e onde termina outro.

Esse transtorno ocorre mais frequentemente em pessoas do sexo masculino (proporção 4:1), podendo-se apontar como características geralmente presentes no diagnóstico as respostas inconsistentes aos estímulos, os padrões restritivos e repetitivos de comportamentos, a tendência ao isolamento social, o perfil heterogêneo de habilidades e prejuízos, além da presença de estereotipias e distúrbios da comunicação.

Justamente por se tratar de um espectro de sintomas e não de uma doença claramente definida com causas genéticas ou parentais, o autismo costumava ser agrupado pela literatura médica ao lado de uma série de outros transtornos do desenvolvimento com os quais guardava similaridade, tais como a síndrome de Rett, a síndrome de Asperger e o transtorno desintegrativo da infância.[3]

Recentemente, porém, a 11ª edição da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-11) inverteu a lógica supracitada, passando a tratar o Transtorno do Espectro Autista (Código 6A02) como gênero, do qual seriam espécies outros transtornos do neurodesenvolvimento, na linha da unificação promovida pela última edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5).[4]

Agora, portanto, o TEA passa a reunir em tronco único outros transtornos persistentes do desenvolvimento, anteriormente enquadrados em categorias autônomas (Rett, Asperger etc.), apresentando também nova subdivisão baseada no diagnóstico de distúrbio do desenvolvimento intelectual, da linguagem funcional prejudicada, além de outro TEA identificado ou não identificado.

Em que pese paire intensa discussão acadêmica a respeito do enquadramento ou não do autismo como deficiência na seara médica, no âmbito jurídico, o conceito de deficiência abordado pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e pela Lei Brasileira de Inclusão não deixa dúvidas acerca da consideração do autismo como deficiência.

Isso ocorre porque ambos os atos normativos compreendem a deficiência sob uma perspectiva funcional e multidimensional, levando em consideração os impactos que as barreiras sociais operam sobre a plena funcionalidade da pessoa e não apenas o grau de limitação do indivíduo.

É evidente, nessa linha, que a interação social da pessoa com transtorno do espectro autista também experimenta um universo bastante preocupante de barreiras multiplicadoras de exclusão e estigmatização, o que atrai, inexoravelmente, a caracterização da deficiência às pessoas com TEA.

Não por outra razão, a Lei 12.764/2012 (Lei Berenice Piana), que incorporou a Política Nacional de Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista no Direito brasileiro, indica expressamente no parágrafo 2º do artigo 1º que: “a pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais”.

Considera, ademais, pessoa com transtorno do espectro autista aquela portadora de síndrome clínica caracterizada por:

deficiência persistente e clinicamente significativa da comunicação e da interação sociais, manifestada por deficiência marcada de comunicação verbal e não verbal usada para interação social; ausência de reciprocidade social; falência em desenvolver e manter relações apropriadas ao seu nível de desenvolvimento;
padrões restritivos e repetitivos de comportamentos, interesses e atividades, manifestados por comportamentos motores ou verbais estereotipados ou por comportamentos sensoriais incomuns; excessiva aderência a rotinas e padrões de comportamento ritualizados; interesses restritos e fixos (art. 1º, § 1º, incs. I e II).

Nesta ótica, independentemente das discussões travadas no ambiente clínico-psiquiátrico, para fins jurídicos, as pessoas com TEA fazem jus a toda proteção estampada no arcabouço normativo dirigido às pessoas com deficiência.

A respeito da Lei Berenice Piana, importante precisar ainda que essa legislação substituiu a designação popular “autista” por “pessoa com transtorno do espectro autista(art. 1º, § 1º), fato que amplia os horizontes conceituais deste espectro para enfatizar não apenas o impedimento biopsíquico das pessoas com transtorno do desenvolvimento, mas a sua condição de sujeito de direitos.

Vencidas essas considerações iniciais a respeito do conceito e do enquadramento jurídico-protetivo conferido às pessoas com TEA, é possível enfrentar os direitos específicos contidos na legislação em prol dessa população. Mas isso é tema para a nossa próxima coluna.

Até breve!

[1] WHITMAN, Thomas L. O desenvolvimento do autismo. São Paulo: M. Books do Brasil Editora Ltda, 2015, p. 15.

[2] SCHWARTZMAN, José Salomão. Transtorno do Espectro do Autismo. In: TIBYRIÇÁ, Renata Flores; D’ANTINO, Maria Eloisa Famá. Direitos das pessoas com autismo: comentários interdisciplinares à Lei 12.764/12. São Paulo: Memnon Edições Científicas, 2018, p. 15.

[3] De acordo com a 10ª edição da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), o Transtorno Global do Desenvolvimento era considerado gênero, do qual seriam espécies o autismo infantil, o autismo típico, a síndrome de Rett, outros transtornos desintegrativos da infância, transtorno de hiperatividade associado a retardo mental e movimentos estereotipados, a síndrome de Asperger, outros transtornos globais do desenvolvimento e o transtorno global do desenvolvimento não especificado. Nesse sentido, conferir também: SCHWARTZMAN, José Salomão; ARAÚJO, Ceres Alves de. Transtornos do espectro do autismo. São Paulo: Memnon, 2011, p. 37.

[4] O texto originalmente escrito com base na 10ª edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) foi atualizado após debate com o estudioso do tema Henrique Hoffmann.

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