No segundo texto desta série sobre a tutela jurídica da pessoa com deficiência, discuti a importância das barreiras sociais para a definição contemporânea de deficiência, procurando demonstrar como os obstáculos socioecológicos dialogam com a instrumentalização da acessibilidade.
Neste terceiro escrito, a proposta é esmiuçar melhor a noção de acessibilidade, conectando-a com outro tema fundamental na proteção das pessoas com deficiência: o desenho universal.
Segundo a Lei Brasileira de Inclusão, a acessibilidade pode ser considerada a possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida (art. 3º, inc. I).
O termo designa, portanto, que espaços, equipamentos, produtos e serviços devem proporcionar autonomia, independência, segurança, mobilidade e comodidade para o exercício dos direitos pelas pessoas com deficiência.[1]
Interessante observar que a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, internalizada no ordenamento nacional pelo Decreto nº 6.949/2009, prevê a acessibilidade ao mesmo tempo como um princípio (art. 3º, “f”) e como um direito (art. 9º), o que foi repetido nos artigos 3º, inciso II, e 53, caput, da Lei Brasileira de Inclusão.
Trata-se, outrossim, de um direito-garantia, de caráter instrumental, meio para a consecução do fim das normas protetivas: a inclusão da pessoa com deficiência em sociedade.
Justamente em razão de sua importância para a construção de uma sociedade inclusiva, criticável a noção de “acessibilidade assistida”, indevidamente contida no inciso I do artigo 8º do Decreto nº 5.296/2004, quando da definição de acessibilidade.
Acessibilidade assistida não é outra coisa senão ausência de acessibilidade (plena!). Se a pessoa com deficiência depende de outra para exercer livremente a sua autonomia, independência e mobilidade, o que se assoma com foros de obviedade é que o espaço em que ela está inserida não é universalmente acessível e demanda adaptações.
Exemplificando: o caso de uma pessoa usuária de cadeira de rodas que depende do auxílio de terceiros para subir em um transporte coletivo não adaptado. De uma, duas: ou a pessoa com deficiência consegue se deslocar sem depender de outrem, ainda que utilizando aparelhos ou tecnologias assistivas (ex: cadeira de rodas), ou a ambiência em que ela está inserida não é inclusiva, violando-se o direito fundamental à acessibilidade.[2]
Soa, portanto, inconvencional e inconstitucional o conceito de “acessibilidade assistida” mencionado no inciso I do artigo 8º do Decreto nº 5.296/2004.
Outro tema contemporâneo que dialoga diretamente com o binômio deficiência-acessibilidade é o desenho universal.
Segundo a Lei Brasileira de Inclusão, o desenho universal corresponde à concepção de produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou de projeto específico, incluindo os recursos de tecnologia assistiva (art. 3º, inc. II).
Essa ideia de um desenho arquitetônico livre de barreiras passou a ganhar relevância após a Segunda Guerra Mundial, período em que a atenção global se voltou para um grande contingente populacional de pessoas com deficiência locomotora e sensorial, herança dos conflitos armados.
Essa concepção de desenho acessível, inicialmente formulada pela Barrier Free Design situada em Washington D.C. (1963), evoluiu a partir da noção de projetos arquitetônicos especialmente desenhados para as pessoas com deficiência, alcançando, após, uma concepção de desenho universal, que abarcasse projetos arquitetônicos com possibilidade de acesso, uso e manipulação de produtos e ambientes por toda a diversidade humana.
A expressão universal design foi cunhada por Ron Mace em 1987. O arquiteto, usuário de cadeira de rodas e de respiradores artificiais, influenciou toda uma mudança de paradigma nos projetos de arquitetura e design, apresentando um conceito de projeto, produtos e ambientes a ser utilizável, na maior medida possível, por todas as pessoas.
O objetivo principal do desenho universal, portanto, seria o de incorporar nos projetos e desenhos arquitetônicos regras de caráter geral (art. 55, §1º, LBI) que traduzissem um ideal de ambiência inclusiva, orientando a concepção de produtos, ambientes, programas e serviços para não dependerem de adaptações especiais, projetos específicos ou custos extras com adequações dos espaços.
Consoante se verifica, o desenho universal não consubstancia uma tecnologia de uso exclusivo para as pessoas com deficiência, mas sim um projeto cuja meta é tornar qualquer ambiente ou produto acessível a toda a sociedade.
A essência, portanto, do desenho universal é “evitar a necessidade de ambientes e produtos especiais para pessoas com deficiência, assegurando que todos possam utilizar, com segurança e autonomia, os diversos espaços construídos e objetos”.[3]
Ron Mace foi ainda responsável por liderar a construção dos sete princípios regentes do desenho universal, adotados atualmente como garantias mínimas para uma acessibilidade plena.
São eles:
uso equiparável: princípio igualitário que preconiza a necessidade de tornar os espaços, objetos e produtos iguais a todos (ex: abertura automática de portas)
uso flexível: princípio adaptativo que revela designs de produtos e espaços permissivos às diferentes habilidades e preferências pessoais (ex: computador com teclado via comando de voz)
uso simples e intuitivo: princípio facilitador que visa tornar óbvia a compreensão da acessibilidade independente da experiência, conhecimento, habilidade ou nível de concentração do usuário (ex: símbolos universais de sanitários adaptados);
informação perceptível: princípio perceptivo que visa atender as necessidades do receptador independente de habilidades especiais, utilizando de diferentes maneiras de comunicação (ex: símbolos, braile, sinalização auditiva etc.)
tolerância de erro: princípio preventivo que visa minimizar os riscos acarretados por ações acidentais ou não intencionais (ex: corrimões em rampas, elevadores com sensores etc.)
baixa exigência de esforço físico: princípio econômico que visa alcançar o máximo de eficiência e conforto no uso de espaços e manipulação de produtos, a partir do mínimo de fadiga ou gasto de energia (ex: torneiras com sensor; maçanetas em forma de alavanca etc.)
tamanho e espaço para acesso e uso: princípio abrangente que propõe dimensões e espaços apropriados para a aproximação, alcance, manipulação e uso pelas pessoas, independentemente do corpo, postura ou mobilidade do usuário (ex: poltronas com tamanhos variados no cinema, banheiros com dimensões adequadas para usuários de cadeiras de rodas etc.).
A Lei Brasileira de Inclusão captou muito bem a essência do desenho universal ao impor à necessidade de incorporação desta concepção na implantação de projetos que tratem do meio físico, de transporte, de informação e comunicação, de sistemas e tecnologias da informação e comunicação, além de outros serviços, equipamentos e instalações (art. 55).
Como se vê, a regra se aplica tanto aos espaços públicos, incluindo os abertos e de uso público, quanto aos ambientes privados de uso coletivo.
Igualmente, a legislação institui o desenho universal como regra de caráter geral e observância obrigatória, indicando que somente nas hipóteses em que este não possa ser comprovadamente empreendido, o projeto possa ceder lugar a medidas de adaptação razoável (art. 55, § 2º).
Já os parágrafos 3º e 4º asseguram, respectivamente, a inclusão de conteúdos temáticos referentes ao desenho universal nas diretrizes curriculares da educação profissional e tecnológica do ensino superior e na formação das carreiras públicas, bem como nos programas, projetos e linhas de pesquisa a serem desenvolvidos com o apoio de organismos públicos.
O parágrafo 5º, a seu turno, inclui a adoção do desenho universal nos processos envolvendo políticas públicas, desde a sua concepção.
A exegese das normas protetivas impõe uma conclusão de duas ordens: i) a lei apenas excepciona o desenho universal em situações de comprovada inviabilidade, cujo ônus passa a ser atribuído ao formulador do projeto; ii) evidencia-se uma ordem de preferência entre o desenho universal e a adaptação razoável, devendo esta ser implementada somente na impossibilidade de concretização daquela.
Dada a sua importância, o desenho universal constitui tema que merece maior enfoque enquanto instrumento de tutela dos direitos das pessoas com deficiência, cumprindo à sociedade civil e aos órgãos essenciais à justiça a sua fiscalização a partir das regras contidas na Lei Brasileira de Inclusão.
[1] O disposto vai ao encontro das Normas Técnicas da Associação Brasileira de Normas Técnicas, que conceitua a acessibilidade como a “possibilidade e condição de alcance, percepção e entendimento para utilização com segurança e autonomia de edificações, espaço, mobiliário, equipamento urbano e elementos” (item 3.1, NBR nº 9.050/2004). Como lembra Flávia Leite, “as normas técnicas, embora sejam de uso voluntário, passam a ter força de lei quando mencionadas explicitamente no corpo legislativo. É o que ocorreu com as normas técnicas de acessibilidade da Associação Brasileira de Normas Técnicas, que passaram a integrar a Lei n. 10.098/2000, o decreto n. 5.296/2004 e a Lei n. 13.146/2015”. In: LEITE, Flávia Piva Almeida et. al. (Coord.). Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 247.
[2] “Toda a movimentação e todo o deslocamento das pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida devem ser realizados pela própria pessoa, em condições seguras e com autonomia, sem depender de ninguém, mesmo que para isso necessite utilizar-se de objetos e aparelhos específicos, por exemplo, uma cadeira de rodas”. In: Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. LEITE, op. cit., p. 248.
[3] SILVA, Lúcio Flávio de Faria e; SILVA, Idari Alves da. Acessibilidade como função social da cidade. In: Direito das pessoas com deficiência e dos idosos. ALMEIDA, Gregório Assagra; SOARES JR., Jarbas; DICK, Maria Elmira Evangelina do Amaral (coord.). Belo Horizonte: Del Rey, 2013, p. 122.